Crônica do Dia: Inteira

Por: Kátia Muniz

Woman-Eating-Solo.jpg.653x0_q80_crop-smartUma parte dela paga as contas, resolve as encrencas cotidianas, organiza a casa, dá comida para os cachorros, trabalha.

Ela cumprimenta as pessoas, respeita filas, não costuma violar a lei, é educada e simpática.

Vai às compras, pesquisa preço, abastece o carro.

Gosta de teatro, de cinema, de se encontrar com as amigas, porém, ultimamente, anda muito caseira.

Olhando assim, parece ser uma pessoa normal, levando a vida num ritmo previsível.

O problema está naquilo que segue alheio aos olhos dos outros, ou seja, na outra parte.

Esta anda sem oxigenação, respirando por aparelhos, em falência.

É esta parte que a consome, que suga suas energias, que a desequilibra.

É esta parte que a faz perder o humor, que promove taquicardia, que deixa a clara sensação de estar caminhando em uma corda bamba.

É esta parte ingrata que lhe tira o sono, que a faz amanhecer com olheiras, que a deixa inquieta.

É esta parte que rouba a sua tranquilidade, que a desestabiliza, que a faz perder o chão.

“O que te traz aqui”. Diz o médico.

“Eu sou saudável, doutor. Não tenho pressão alta, nem baixa. Pode aferir. Ela oscila entre 11 por 7 e 12 por 8. Nada mal, não é mesmo? Minha menstruação é regular, faço mamografia e Papanicolau anualmente, colesterol está dentro do limite aceitável e todos os meus exames estão em dia. Sou satisfeita com minha aparência, nunca fiz procedimentos estéticos e não estou acima do peso. Ainda assim, quero que me leve para o centro cirúrgico. Retira, doutor, esse amor que carrego aqui dentro. Expele, elimina, expulsa, extrai, liquida, destrói, suga, remove. Gasta os sinônimos que forem necessários para exterminá-lo. Se vai ficar cicatriz, pouco me importa. Será mais uma a se juntar a outras tantas. Sabiamente, elas se fazem companhia. Você mesmo irá constatar. O que eu preciso, o que é imprescindível, doutor, é que eu saia da cirurgia com a grata sensação de voltar a ser inteira.”

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